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Em 1959, quando os EUA se impunham como império econômico e cultural, o artista norte-americano Frank Stella apresentou sua série Black Paintings no MoMA. Rejeitando as tendências ditadas pelo Expressionismo Abstrato, suas pinturas prepararam o terreno da arte para os artistas do movimento minimalista, que surgiu na década de 1960, e cuja influência se estenderia mais tarde à geração de pintores pós-modernos nas décadas seguintes à sua carreira.
A retórica do poder é o título escolhido por Marcelo Cidade para a série de quatro objetos no qual o artista se apropria das emblemáticas Black Paintings de Stella como base formal para uma crítica acerca do emprego da arte como estratégia de dominação.
O interesse de Cidade pelo minimalismo aparece inicialmente na escultura O Último dos Moicanos [The last of the Mohicans], 2009, apresentada na individual Senhor fantasma, vamos falar [Mr Ghost, let’s talk], no Museu de Serralves (Porto), no mesmo ano. Em O Último dos Moicanos, o artista se apropria da escultura Untitled (3Ls), 1965, de Robert Morris para questionar a função da escultura no espaço público. -
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Por meio da apropriação, Cidade busca apresentar um outro lado da história que passa desapercebida ou, na maior parte das vezes, é simplesmente omitida. Com essa prática, o artista pretende evadir a lógica formal do pensamento norte-americano greenberguiano, trazendo para sua obra um lado mais social. Para ele, o minimalismo guarda características do neoliberalismo no tratamento que dá às problemáticas sociais, o que transparece na formalização das obras, caracterizando-se como um novo formalismo onde o artista terceiriza a produção da obra, que é criada em escalas monumentais por meio do poderio industrial norte-americano. Ou seja, o processo de produção industrial fordista influenciando as artes plásticas.
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Mas foi em 2013 que Cidade teve sua primeira experiência de imersão no minimalismo, em uma visita ao Dia Beacon Foundation de Nova York. A partir do contato com a obra do americano Dan Flavin, Cidade cria sua versão para a obra “monuments” to V. Tatlin (1964-1990). Segundo Cidade, a série tem o poder de inverter o “poderio do espaço”; sua existência não depende da luz externa, mas contêm a própria luz.
(Un) Monument for V. Tatlin (2016) fala sobre a falência industrial. Se a obra do Flavin representa a exaltação do poderio norte-americano, os (Un) Monuments de Cidade sugerem, por meio da obsolescência das lâmpadas fluorescentes, uma inversão de polaridade desse império no Brasil: uma visão do sul acerca de uma obra criado pelo norte global. -
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O minimalismo embutido nos (Un) Monument for V. Tatlin contribui formalmente para abordar a influência sócio econômica e política dos EUA no Brasil. Interessa ao artista discutir essa relação pós-colonialista. Nesse sentido, Cidade reinsere no campo da arte elementos que pertencem ao sistema de produção industrial capitalista, reinventando seu valor como objeto. O próprio sistema da arte revalida seu valor de troca devolvendo ao sistema um produto altamente inflacionado.
Carl Andre (1935) é o segundo artista desta série de apropriações. Em Equivalência e desequilíbrio (2020), Cidade agrega elementos da arquitetura hostil às formas usadas por Andre em sua série de esculturas Equivalent, de 1966. Às formas idealizados por Andre, Cidade soma pedras de calcário pontiagudas, fato quer representa um certo risco já que o visitante tem que estar sempre atento. A obra conduz a percepção no espaço criando uma área de tensão.
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O texto Minimalism and the Rhetoric of Power, da historiadora Anna C. Chave, conduz Cidade aos Black Paintings de Stella (1936). Decidida a obra, Cidade começa a pesquisar materiais e descobre os painéis canaletados em MDF usados em lojas de badulaque do centro de São Paulo.
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Sobre a base geométrica da série A retorica do poder, Cidade suspende objetos criando uma alegoria à situação política e social que o Brasil vive nos dias de hoje. Cada uma das quatro peças conta com uma narrativa simbólica acerca dos problemas que o país e o mundo atravessam. Em Brasil aSSima de tudo, peça que não participa da exposição, Cidade dispõe uma garrafa de Coca Cola vazia, um tênis Nike usado, uma baioneta e um capacete verde militar, associando assim militarismo e cultura popular.
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Deus aSSima de todos, 2021
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Em Deus aSSima de todos, um escapamento de carro sustentado por uma haste horizontal faz alusão ao desenvolvimento fordista, mas também à religião. De certo ângulo pode-se associar essa forma a uma cruz ou a um corpo.
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Fordlândia, 2021
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Já em Fordlândia, Cidade dispõem correias dentadas de borracha como em uma lojinha apontando para a importância deste material dentro do sistema industrial: a engrenagem do capitalismo relacionado ao extrativismo da borracha dos anos 1950, na cidade de Fordlândia (Pará), na Amazônia.
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O menino da porteira, 2021
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Finalmente em O menino da porteira, o artista reúne uma direção de automóvel, um berrante e fones de ouvido usados que aludem ao bolsonarismo e ao “realismo agro” da exploração do meio ambiente.
Mas o quê um tubo de escapamento, correias de borracha, um volante de carro, um berrante, fones de ouvido descartados, um par de tênis usados, uma baioneta e uma garrafa pet, objetos cujo atributo comum é a precariedade, nos revelam acerca das estratégias de dominação no mundo atual? -
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Texto: Marcos Gallon; Tradução: Jan Fjeld; Fotos A retórica do poder: Filipe Berndt; Fotos Equivalência e desequilibrio: Cortesia Bruno Murias; Demais imagens: Cortesia Marcelo Cidade
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